Como girassol

Aguardo pacientemente o fim dos dias nublados; munida de chá e meias grossas. Esquadrinho o céu em busca de luz. Até um novo dia que raia, ensolarado. Sigo seus movimentos. De manhã, entra pela sala, a leste, e se espalha pelo piso. Eu copio os movimentos. Sobre a canga de uma deusa indiana cujo nome não lembro, me deito. Fico assim com ares de praia. Depois, o calor é sentido no canto da sacada do quarto. Suave. Para se despedir de mim na janela da lavanderia. Em dias de verão fico como girassol; acumulando energia. Pois preciso de sol para florescer.

#fiqueemcasa

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Medo

Eu não imaginaria afirmar, sem meneios de cabeça e outras graças que indicassem uma brincadeira, que, neste dia banal, tal evento tivesse acontecido. Mas fato é que, ao entrar no espaço de vidro reservado em torno da ducha do banheiro, com a cabeça cheia das preocupações cotidianas que agora já tornaram-se esvaziadas de qualquer importância e que, tenho certeza, não vejo como voltarão a ter, nem notei sua presença. Foi somente após fechar a porta transparente, com manchas pontuais, decorrentes do sabão que espirra junto com a água quente, que foram notadas e acrescentadas à minha lista de tarefas pendentes, e me virar para a parede oposta, que pude vê-lo.

O primeiro impulso não foi um movimento, tampouco um som ou qualquer espécie de reação; apenas paralisei diante do horror. Era algo como um mosquito gigante, um ser com ar pré-histórico, pousado?, parado?, em pé ou deitado?, em todo o canto sudoeste do banheiro. Devido ao espaço reduzido, que mal permite esticar bem os braços, fiquei a meio metro do monstro. E, para além da falta de reação física, meu sentimento ordenava a fuga. Só não assim procedi em vista da porta fechada logo às minhas costas; e não haveria como, em nome do bom-senso, ter coragem de virar novamente e ter-me exposta, sem saber seus movimentos.

Tão logo o estupor passou, a figura foi ficando de certo modo interessante. Sob um olhar mais atento, o imenso corpo, que a princípio pareceu-me preto, mostrou-se num tom escuro de marrom, com minúsculas pintinhas brancas cobrindo as laterais do dorso. E as patas somaram-se ao total de cinco, o que decerto era curioso e fazia a contagem soar equivocada. Falta-lhe uma pata, concluí, seguindo o esquema lógico de sua disposição: duas logo abaixo da cabeça, simétricas, uma de cada lado; mais duas um pouco adiante, como que no meio do corpo, também simétricas; e uma perto do fim, só do lado esquerdo. Claramente havia perdido a pata direita. Senti pena.

Voltei a cabeça para a outra parede, num impulso de pensar numa decisão que pudesse ser tomada. Mais à vontade com a improvável situação, não me assustei quando vi que a criatura escalava a parede até o teto, num esforço árduo e persistente. À minha frente surgiu a saída, concreta e metafórica. Abri a pequena janela que permitiria a liberdade. O enorme inseto compreendeu a oportunidade. Ágil, mesmo com a falta de um membro, enfiou-se pelo espaço. Mas, por maldade do destino, ficou ali entalado. Meu impulso de empatia deslocou-me um passo adiante, mãos levantadas para empurrar o enorme bicho para fora. Não o fiz. No último instante, não tanto por nojo ou repulsa do toque, recolhi de volta os braços para perto do meu próprio corpo. Eu notei, espantada, que, pouco antes de finalmente conseguir escapar da janela e se libertar de meu banheiro, o inseto tremia.

Foi então que percebi que meu medo também me temia.

Saúde mental e quarentena

A pandemia trouxe para nossas vidas mais do que o isolamento e a mudança de rotina. Há o medo, a insegurança, a impossibilidade de negar a morte. Há a preocupação com a própria saúde e a dos familiares e amigos. Temos saudade dos que estão longe, falta de abraços, contato físico e olho no olho. O desejo de sair, esticar as pernas, passear, respirar outros ares e até mesmo trabalhar. Ver a cidade, pessoas, carros; sentimos falta da sensação de normalidade. Há o receio de perder o emprego, o desespero de ter perdido o emprego ou o medo de não conseguir mais emprego. A possibilidade da doença e da fome. Os dores da empatia pelo sofrimento dos outros. Temos ansiedade, depressão e angústia. Alguns já tínhamos ansiedade, depressão e angústia. A pandemia pode também afetar nossa saúde mental.

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Livro: Árvores Tímidas

 

Ela

Ela chegou enquanto eu ainda me distraía

Do tédio

E o sol entrava pela janela

formando um retângulo no chão

Inclinei um pouco o rosto

virei-me como que por impulso

num gesto instintivo

e a vi me encarando

Sua expressão era apreensiva

parecia esperar de mim

alguma reação

Quase esbocei um sorriso

Eu que me encontrava ali só

com minha solidão

Ela sentou-se ao meu lado

e esticou a mão

que logo me pareceram garras

Pulei num único movimento

Só um pensamento me ocorreu então

Por qual porta entrou

se não abro nunca um vão?

Corri para o quarto

precisava pensar

Ela me seguiu sorrateira

encostou a cabeça no batente da porta

e disse para eu não me preocupar

Aceitei o conselho

Como poderia dizer não?

Passamos dias em sintonia

Com passos ensaiados,

íamos de cômodo em cômodo

explorando a casa sem pressa

Se eu sentava, ela vinha ao lado

Se eu coçava o nariz, ela imitava

Ela tornou-se meu perfeito espelho

Ou eu que era o seu borrão?

Passei a angustiar-me

com sinistra companhia

Mas se ia para a sala

ela logo aparecia

Virei-me numa volta

em passos firmes no corredor

até minha cozinha

Mal pude acreditar

quando vi que ela já estava lá

Corri para o quarto, sala, banheiro

só para implorar a ela o meu perdão

de uma falta que já nem recordo

e que para ela vale minha condenação

Fingi que já não a ouvia

Engoli o café e pão

Entornei a garrafa

Abri e fechei os livros

Liguei e desliguei o rádio e a televisão

Mas ela continuava impassível

com o mesmo olhar

de quem espera o inevitável

Ouvi meu choro contido

e tomei nova decisão

Bolei um plano infalível

e tranquei minha depressão no porão.

 

Inveja

Invejo a calma imperturbável

dos que não se importam

dos que não se abalam

dos que não enxergam além do próprio egoísmo

Odeio o sono sereno

dos que derramam minhas lágrimas

A solidão

devora as migalhas do caminho

Não volto nem sigo adiante

A queda do céu ao inferno

pode ser tão rápida

Penso em trocar de lugar com os que já foram

E invejo os que não compreendem

minhas palavras.