Ouvir é uma arte

ouvir bipolar e afins

 

Alguns chamam de era da informação. Outros, era da pós-informação. A verdade é que poderíamos considerar o nosso presente como a era da solidão. Em meio a mais de 7 bilhões de outros humanos, num mundo cada vez mais globalizado e “conectado”, a sensação angustiante de solidão continua crescendo. Os índices de transtorno mental e suicídio, que claramente se relacionam à forma como nos relacionamentos e nos configuramos socialmente, também crescem a cada dia. A solidão aparece enquanto o outro está ao nosso lado. A solidão aparece em nossos diálogos desconexos, desencontrados. Falamos e ninguém ouve de verdade. E nós — celulares a postos — acreditamos ouvir enquanto olhos e dedos deslizam pelas telas.

Quantas vezes você se pegou pensando na resposta enquanto a pessoa na sua frente ainda falava? Raramente dedicamos toda a nossa atenção àqueles com quem conversamos. Nossa mente pula de pensamento em pensamento. E isso acontece porque nos acostumamos à ideia de que podemos lidar com vários estímulos e informações ao mesmo tempo. Mas isso não funciona. Relembro quão limitado é o meu poder de atenção toda vez que assisto a uma série ou filme com celular na mão, mandando mensagens e conferindo notificações. De repente percebo que cenas e cenas passaram sem eu notar. É preciso parar, voltar, focar.

Mas ouvir o outro vai muito além de prestar atenção. Envolve empatia, compreensão. Segurar o impulso do ego, que insiste em ver tudo a partir de seu próprio ponto de vista. Ouvir é colocar-se no lugar do outro, calçar os sapatos do outro e sentir as pedras que causam bolhas em seus pés. É entender o que foi dito através da percepção de quem fala. Qual a dor do outro? Qual a alegria do outro? A vivência de uma experiência comum pode ser diferente para cada pessoa. O que é tristeza e o que é felicidade para mim pode não ter o mesmo significado para aquele que, olhando em meus olhos, me conta como foi seu dia. Falar nem sempre é fácil. Mas ouvir á uma arte. Esquecida num museu que ninguém visita.

Talvez a conexão que a tal era da informação necessita não seja passada digitalmente. Talvez a comunicação de que precisamos não seja a mais rápida possível — instantânea e distante. Pois aplacar a solidão exige tempo. O tempo da fala, de poder confiar ao outro as angústias da alma. O tempo do desabafo, palavra após palavra presa na garganta. E respeitar esse tempo, e permite-se falar, confiando e tendo atenção verdadeira, pode fazer toda a diferença para quem se vê soterrado por sofrimentos.

Falar é terapêutico. Ouvir também pode ser.

 

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4 comentários em “Ouvir é uma arte”

  1. É tudo verdade Bia. Hoje o mundo está cada vez mais só exactamente por isso, disse tudo. As pessoas vivem demasiado concentradas no “eu” e não na partilha de e experiencias, no respeito no ouvir o outro.
    E pelo que observo muitas vezes, hoje em dia, parece que se ouve, com o intuito de ser benefico ao próprio ego e não para socializar, para estar, para ajudar, para sentir, para nos darmos de verdade. É duro ver como o ser humano está cada vez menos humano e mais artificial. As pessoas nem têm consciência que estamos a viver assim, e isso trás muita pena.

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  2. É uma triste realidade crescente, que sabemos, que reconhecemos, que eu estou dentro dela também, que o tempo passa, e que apesar tudo isso deixo-me envolver neste quase mundo paralelo.
    Há quem diga que é desde o surgimento da televisão. Qdo nasci, já cá ela estava. Não sei como foi o início de tudo, mas acredito que sim. Naquela época não havia a possibilidade de rever, de guardar como há hoje, então deixava-se de sair para ver o capitulo da telenovela.
    E esse mundo está influenciando a todos na concentração também, além da solidão.

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  3. suas palavras me fizeram lembrar de sempre que eu assisto um filme com o telefone na mão, na maioria das vezes nem chego a ver o filme porque estou mais preocupado com as redes. ouvir é muito difícil quando estamos muito preocupados connosco

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  4. Realmente, hoje são poucas as pessoas que conheci dispostas a ouvir de verdade. Sem interrupções, sem desvios de atenção, com a dedicação necessária para aquele que fala. Trocamos para que a empatia se torne maia frequente e que os desabafos sejam mais comuns de serem ouvidos. Afinal, não temos 2 ouvidos e apenas uma boca à toa, né?

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